A Constituição da República é bastante omissa no que se refere ao tema saneamento básico, sendo que a primeira menção ao assunto se encontra no artigo 21, XX que menciona que é compete à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos.
Depois menciona no art. 23, IX que competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.
Já o entendimento que o saneamento básico é assunto de interesse local, ressalvado os casos de instituição de região metropolitana ou microrregião estabelecida pelo Estado, é extraído através da interpretação do artigo 30, I da Constituição, que o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.842/RJ, contudo não se trata de uma cláusula pétrea.
A divisão das responsabilidades e atribuições de cada ente da federação decorrem de um pacto político entre os Governos federal, estaduais e municipais, de modo que podem remodelar as suas atribuições, desde que com isso não tendam a extinguir determinado Ente da Federação.
Apenas para se entender sobre as possibilidades de mudanças na repartição das competências, cita-se como exemplo, não há nada que proíba que o direito penal deixe de ser atribuição de legislar da União e passe a ser estadual, como é nos Estados Unidos, Entretanto, por questões do modelo federativo brasileiro, que tende a centralização, é que optamos politicamente pelo fato de que somente cabe à União legislar sobre direito penal.
E não há nenhum problema quanto a isso.
O problema é buscar o atalho constitucional, ou seja, tentar ir contra aquilo que a Constituição determina, mesmo que não expressamente, ou o que o Supremo já tenha dito. O texto constitucional, por diversas vezes, apresenta aparente inconsistências e incongruências, entretanto compete ao intérprete do Direito, e em questão constitucional, é competência do Supremo Tribunal Federal fazer tal exegese.
No caso do relatório do Senador Tasso Jereissati, sobre a MP 868/18, houve uma clara tentativa de esvaziar a competência dos municípios ao retirar dos mesmos a
possibilidade de auto regulamentar seus serviços de saneamento básico, tendo uma clara ingerência da União e dos Estados na formatação dos mesmos. Isso, claramente, invade a competência dos municípios!
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A União apenas institui por meio da ANA as normas de referência para harmonizar a regulação dos serviços e condiciona o acesso a recursos federais ao cumprimento dessas normas de referência, sem qualquer hierarquia sobre os entes estaduais ou municipais. O objetivo é conferir maior segurança jurídica aos investimentos necessários para a universalização do saneamento básico, por meio da harmonização da regulação.
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Em razão do papel fundamental desempenhado pelos municípios no setor, tornamos obrigatória a consulta às suas entidades representativas no processo de elaboração das normas de referência.
Justificativa do relatório
Analisando a justificativa do relatório percebe-se que a mesma tenta por meio de um jogo argumentativo mascarar a real intenção da medida provisória de atribuir competência federal para instituir as normas de referência para o setor de saneamento básico e asfixiar a competência municipal, dando aos entes municipais apenas um papel secundário.
Compete destacar que existem outros serviços públicos de competência municipal que não sofrem tanta ingerência federal no que tange à uma regulamentação nacional, como, por exemplo, o serviço de transporte público municipal. Nesse caso, compete a cada município prestar da maneira que entender mais adequado tal serviço. É óbvio que os serviços de saneamento básico possuem características bem diversas do setor de transporte municipal, entretanto deve ser respeitada a competência municipal ou da região metropolitana a depender do caso.
Conforme, já havia dito em outra Coluna, somente com a discussão integrada dos diversos setores para uma alteração profunda do normativo que rege a matéria, inclusive com uma proposta de emenda à Constituição para normatizar constitucionalmente alguns temas ligados ao saneamento, é que irá se permitir maior segurança jurídica aos entes públicos e privados.
Emenda
Nessa emenda à Constituição poderia ser determinado que o saneamento básico seria de regulação federal e operação em âmbito regional, por exemplo, competindo aos municípios somente residualmente realizar a operação desses serviços. Todavia, uma mudança dessa profundidade, deve ser precedida de um debate mais amplo do que a medida provisória possibilita, que possui prazo para ser votada até 3 de junho, sob pena de perda de sua validade.
De qualquer forma, houve alguns avanços interessantes no relatório, como a possibilidade expressa da adoção da arbitragem para os contratos de prestação dos serviços de saneamento básico, nos termos do parágrafo único do artigo 10-D, o que é um importante avanço para o aumento da segurança jurídica.
Destaca-se que em outros setores da infraestrutura nacional, em especial, petróleo e gás, a arbitragem é regra em virtude da complexidade das questões envolvidas e dos altos valores que a maioria dos contratos possuem. No setor de saneamento básico, com o relatório da MP 868/2018 também deverá ser a regra nos contratos de concessão e de parcerias público-privadas.
Por fim, resta clara a intenção de esvaziar cada vez mais a possibilidade do ente público municipal poder decidir acerca da prestação dos serviços públicos de saneamento básico, com maiores poderes à Agência Nacional de Águas (ANA) e uma tentativa de federalizar o serviço de modo a melhorar o ambiente regulatório e, portanto, aumentar a segurança jurídica. Contudo, a forma como vem sendo conduzida a matéria, entendo que irá em breve aumentar as discussões judiciais e a insegurança jurídica para prestadores públicos e privados.
Do Colunista:
O colunista Rodrigo Hosken é advogado sanitarista, Pós-graduado em Direito Tributário, e associado da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (ABES-RJ).