Legislação que prevê metas para descarte correto de resíduos completa 10 anos, mas na prática pouco mudou. O país recicla apenas 3% de suas 79 milhões de toneladas de lixo produzidas por ano
Por: Marília Marasciulo para a Revista Galileu
Em agosto de 2020, a Política Nacional de Resíduos Sólidos completa 10 anos. Mas a legislação que estabelece estratégias para a prevenção e a redução da geração de lixo, além de criar metas para enfrentar problemas ambientais, sociais e econômicos que decorrem do manejo inadequado dos descartes está longe de ter alcançado seu objetivo — especialmente quando o assunto é reciclagem.
O Brasil gerou, em 2018, 79 milhões de toneladas de lixo por ano, um aumento de quase 1% em relação ao ano anterior, segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos 2018, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Deste total, a estimativa é de que somente 3% sejam de fato reciclados, sendo que o potencial é de até 30%. “Não mudou muito a visão de que basta ter lixeiras e o sistema de coleta já está resolvido. Não está”, diz Ana Maria Luz, presidente do Instituto GEA — Ética e Meio Ambiente, organização que tem como finalidade desenvolver a educação ambiental.
Os dados são alarmantes. O Brasil é hoje o quarto maior produtor de lixo plástico, segundo um estudo da World Wildlife Fund (WWF): são 11,3 toneladas por ano, das quais somente 1,28% são recicladas. O número está bem abaixo da média mundial, de 9%. E, embora quase três quartos dos municípios façam algum tipo de coleta seletiva, a maioria se concentra no Sul e Sudeste. No Centro Oeste, menos da metade das cidades tem coleta seletiva.
Para piorar, em muitas localidades o serviço não abrange todos os bairros. Na prática, apenas 17% da população do país é atendida pela coleta seletiva, de acordo com um relatório de 2018 da ONG Compromisso Empresarial de Reciclagem (Cempre). A cidade de São Paulo, por exemplo, tem desde 2014 duas grandes centrais mecanizadas de triagem com capacidade diária para até 250 toneladas cada, mas recebem somente metade desse volume, segundo João Gianesi Netto, presidente da Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Limpeza Pública (ABLP). Se somadas à rede de cooperativas de catadores manuais, a capacidade chega a pouco mais de 700 toneladas, embora o número processado nunca chegue a isso. “Onde está a falha?”, questiona Netto. No conjunto todo, de acordo com o próprio especialista.
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Uma cadeia com muitas lacunas
“Qualquer programa de coleta seletiva depende que, primeiro, as pessoas pensem antes de jogar o resíduo no lixo para que ele seja separado desde a hora que cai na lixeira e, segundo, que ele chegue à reciclagem”, analisa a presidente do Instituto GEA.
O problema é que a maioria dos brasileiros ainda desconhece o funcionamento da reciclagem. Uma pesquisa do Ibope de 2018 mostra que 66% da população sabe pouco ou nada sobre coleta seletiva, e 39% não separam o lixo. Outro levantamento, este de 2019 feito pelo instituto Ipsos, revelou que 54% dos brasileiros não entendem como funciona a reciclagem em sua região — no restante do mundo, esse índice é de 47%, em média. “O sistema todo funciona mal porque não investimos em educação, se [o cidadão] não sabe nem o dia da coleta seletiva, ele não vai separar o lixo”, comenta Luz.
Falta informação também sobre o que é reciclável ou não. Embalagens de salgadinho e balas, por exemplo, são feitas de um plástico muito mole, que tem pouco valor comercial para ser reciclado, então raramente o são. Já embalagens sujas perdem a capacidade de reaproveitamento (sim, é preciso lavar o pote de iogurte antes de jogá-lo na lixeira). E, se o rótulo é impresso diretamente na embalagem (como nos potes de margarina), a tinta do material impede a reciclagem.
Na outra ponta, porém, existe um desinteresse político e industrial no tema pela falta de vantagens econômicas da reciclagem. Enquanto algumas embalagens têm logística de reaproveitamento consagrada, como produtos de aço, alumínio e papelão, outras são descartadas pela falta de retorno econômico, como o plástico. “Se o valor pago por elas é baixo, não há motivação para que catadores separem o produto”, diz Gianesi.
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Reciclagem de plástico
Daí uma das explicações para o Brasil ser um dos maiores recicladores de alumínio do mundo e o lanterninha quando o assunto é plástico: segundo a Cempre, 1 quilo de alumínio é vendido por R$ 3,7, em média; já a mesma quantidade de garrafas PET (segundo material de maior valor) rende, no máximo, R$ 1,8. “É preciso haver um incentivo para que as pessoas atuem nessa área de negócios, com mecanismos que favoreçam as indústrias que consumam o material reciclado e o tornem competitivo em relação ao material virgem”, explica o presidente da ABLP.
Mas não é tão simples: os próprios impostos do país são um empecilho. De acordo com Gianesi, o sistema tributário brasileiro taxa mais a matéria-prima reciclada do que a virgem, encarecendo o produto final. Dá para comprovar isso com uma rápida pesquisa em uma loja de produtos de escritório por atacado: um pacote com 5 mil folhas recicladas custa R$ 229, enquanto a mesma quantidade de folhas feitas de material virgem sai por R$ 209.
A reciclagem é uma farsa?
Diante de tamanha dificuldade em fechar os ciclos para tornar a cadeia completa, há quem questione se a reciclagem não passa de um mito: como não funciona na prática, só serviria para “aliviar” a consciência dos consumidores, que param de se preocupar com o destino final de seus resíduos.
É o ponto levantado pelo documentário A Farsa da Reciclagem, da série Desserviço ao Consumidor, disponível na Netflix. A produção mostra como grandes corporações introduziram plásticos descartáveis no mercado e investiram em propaganda defendendo que não há problema em seu consumo desenfreado — basta reciclá-los. Mas elas, muitas vezes, se isentam da responsabilidade de fazer isso acontecer. “É injusto que recaia nas costas da sociedade os custos de uma empresa que está ganhando em cima disso”, opina Luz.
Nos Estados Unidos, a “farsa” da reciclagem ganhou proporções jurídicas quando uma moradora da Califórnia, Kathleen Smith, descobriu que as cápsulas de café usadas em sua cafeteira não eram recicláveis, conforme anunciava a fabricante Keurig. Embora feitas de um plástico reciclável, são muito pequenas e leves para de fato serem reaproveitadas (mas rendem uma linda fantasia de Carnaval, como mostrou a ativista Giovanna Nader em seu Instagram no último dia 25 de fevereiro). O processo ainda está tramitando, mas já surtiu alguns efeitos: a empresa prometeu adotar embalagens 100% recicláveis ou compostáveis até 2025. Mas essa é só uma das grandes corporações que foram responsabilizadas pela encrenca; ainda faltam centenas de outras.
Isso significa, então, que devemos parar de nos preocupar com separar o lixo e seguir nossas vidas como se nada fosse acontecer (como de fato dificilmente acontece)? Não exatamente. O plástico é só a ponta de uma montanha de lixo — e a mais visível, por se tratar de um material leve que se espalha facilmente e bóia na água. Existem alternativas para embalagens menos agressivas ao meio ambiente, como o próprio caso da Keurig demonstra. O que falta é interesse econômico e político em adotá-las.
Lidar com o destino final do lixo também é um passo essencial. No Brasil, o que não é reciclado vai parar em aterros sanitários, lixões ou os chamados aterros controlados (que, apesar do nome, não têm um controle tão rígido assim da contaminação do meio ambiente ou das pessoas que trabalham ali). O mesmo relatório da Abrelpe revela que 59,5% (118,631 toneladas) do lixo produzido no país por dia acaba em aterros sanitários; 23% (45,830 toneladas) vão para os aterros controlados e 17,5% (34,850 toneladas) se destinam aos lixões – que devem ser extintos até 2021, de acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Poluição marinha
Sem o manejo correto, os resíduos podem cair em rios e córregos e, cedo ou tarde, chegam ao mar. Um estudo publicado em 2016 no periódico Science of the Total Environment estima que 80% do plástico no oceano vem de lixo gerado em áreas terrestres – apenas 20% são de atividades marítimas. Não à toa, existem hoje ilhas de plástico no Oceano Pacífico com tamanho equivalente a duas vezes o território da França.
Também não adianta acreditar que uma cruzada contra canudinhos ou sacolinhas plásticas vai dar conta do problema – nenhum item sozinho é responsável pelo problema. “Isso desvia a atenção do público para o que realmente importa”, diz Luz. O problema é sistêmico, e todos têm sua parcela de responsabilidade na solução: a indústria, o governo e você, claro.
Fonte: Revista Galileu.
10-03-2020